domingo, 2 de novembro de 2014

AO LADO DA SAUDADE

As lembranças que gerimos tornam-se grandes com o tempo. Sucedem os anos, entre as misérias dos achaques quotidianos e as euforias passageiras de uma conquista ilusória, eis-nos frente aos intervalos dados pelos ciclos possíveis. É, pois, ao tempo, que devemos as maiores explicações dos mistérios da vida, tantas vezes interrompida de forma inglória. É sempre breve, dizemos, e assim se consome a maior fatia da história de cada um, na espera que se repete. Que fazer para ganhar uma nesga de eternidade? E se não for em solidez de pensamentos, que seja ao menos em obra visível e atitudes... Assim, em contas finais, o que deixamos a quem mais gostámos: momentos e mais momentos. Se possível, seriamente marcantes, porque a nossa vida é solene demais para andar entretidos com insignificâncias e desperdícios. Momentos que queremos guardados nas memórias tranquilas de cada um, em vivência silenciosa de afectos e saudades, não raro alimentadas pela crença de vida sem fim, que nos aproxima do espírito daqueles que, para nós, marcam a sua ausência orgânica, material, concreta. Acima dela, todos os tempos de separação nos trazem a presença incorpórea de quem mais nos marcou a existência e a razão de ser como somos. Estar ao lado dessa saudade não é estar à margem dela, mas vivê-la em presença firme e capaz de provocar em nós o eco intenso de partilhar uma realidade única e profícua.

terça-feira, 15 de abril de 2014

DA SUSPENSÃO DO TEMPO

A vida é sempre curta, diz-se. A separação das coisas que ao terreno concreto nos ligaram resolve-se no pó das origens, como regresso à fundação das substâncias mais transparentes que a aprendizagem dos dias nos vai dando gratuitamente. Partir não traz uma perda infinita, ainda que irremediável, da presença de quem desejamos lembrar eternamente, mas significa um ganho mais na nossa memória que queremos sempre viva. Afinal, se tivermos vida a sério no íntimo mais fundo, estamos a garantir a suspensão do tempo, em ordem a conservar presente uma imagem, gesto, palavra, aroma ou olhar de quem já nos espera, pedindo lucidez até ao fim, sumário das lições dadas ao longo da existência que persiste. A parte do que se conheceu foi incompleta – é sempre assim – e daí o abatimento sentido, por reconhecermos a inexorabilidade própria do acto de viver. Ficam os familiares, amigos e demais pessoas a tentar completar o projecto de vida remoto encetado, sem termos sabido exactamente nem como nem quando. Ficaremos expectantes, aguardando pela resposta impossível de dar por quem, na quietação dos silêncios e na placidez dos olhares derradeiros, se despediu sem aflições nem desdéns. É assim mesmo: os maiores sinais de gratidão com a vida ficam para o fim dos nossos dias, na espera lenta dos chamamentos vindos de outras humanidades que, de uma forma ou outra, ansiamos. Lá, onde só a memória consegue dizer que a vida é o dom inesgotável de estarmos próximos, porque competentes para suspender o tempo a nosso favor. 

sábado, 4 de janeiro de 2014

O MISTÉRIO POSSÍVEL

A entrada num novo ano traz sempre consigo um desconhecimento do que falta vencer. São outras expectativas, inevitavelmente, que entram no nosso campo de realizações possíveis, quantas vezes em consequência do que foi e do que podia ter sido o ano anterior. Ou se pretende a sério a confirmação dos sinais volvidos, ou uma alteração radical dos acontecimentos futuros, começando pela formulação impressiva de desejos pessoais. Uma coisa é certa: é nestas fases da vida colectiva que as pessoas se encontram mais unidas, porquanto firmadas na procura de melhores condições de vida, o que, afinal, parece suficiente para dar relativo apaziguamento ao penoso curso dos dias. Reconhecidamente árduos, já bastam os compromissos de responsabilidade social para trazer as indesejadas despesas, mas inadiáveis e irrevogáveis, por força das actuais circunstâncias críticas da vida comum. Começar de novo requer abertura de espírito. Abertura à capacidade de optar pela mudança (primeira premissa); ao entendimento lúcido dos indícios principiais; à aceitação da novidade. Sempre fascinante, porque sem rumo prévio, o que é o não estreado que deve prender a nossa atenção, já que dele surgem os maiores e promissores sinais para o novo ano. E muito frequentemente. Mais difícil é ter a capacidade de os interpretar, porque nisso somos sempre incultos e mal adestrados, por via de uma educação mais reprodutora que criadora. Portanto, o que conta como decisivo para a história deste ano que dá os primeiros passos é olhar o futuro com o desejo de aceitar cada surpresa como única, assim como uma dádiva de origem sobrenatural, porque o que surge inesperadamente nunca deve nem pode ser desprezado. Acolher uma graça tal qual se oferece é a síntese dos nossos comportamentos.