quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Um brilho na eternidade

A vida surpreende-nos continuamente. Pode ser numa curva qualquer do nosso rumo, em que a escassez de largura da via pede menos ímpeto ou a maior afoiteza na vontade de chegar pode apetecer velocidade, abrindo a luz do itinerário para perceber melhor a paisagem. E porque de cadências se faz qualquer viagem, consoante a gestão dos tempos próprios e dos recursos ao dispor, vão-se trocando as mudanças à medida das condições de espaço e segurança. Fases sobre fases do longo trajeto em curso, que vemos sempre incompleto e também ele em mudança causada pelo avanço dos dias.    

Sucessão de intenções, contentamentos e derrotas, no que podemos acumular de cintilação onírica desde a infância, vive-se pelo desejo de rutura de um passado triste e sofrido, mas tão limitado quanto tranquilo, longe da altura reclamada pela pressão de milhões com expectativas no máximo.   

Uma estrela, quando assim é vista à distância do talento, mesmo nas intermitências dos ciclos, brilha para a eternidade, porque foi desse modo inspirador que atraiu os olhares dos seguidores terrenos, na expectativa de nunca perder o lugar na constelação dos lugares divinizados. 

O talento, o génio e a subversão, irmanados em arquivo de momentos raros e irrepetíveis, criam o mito capaz de vencer a poeira dos dias, por onde andam os normais, quantas vezes descrentes e receosos da imortalidade possível. Reservada aos predestinados, sempre guarda um lugar solene para os insatisfeitos, humanos como todos, mas divinos nos sonhos.       

domingo, 31 de dezembro de 2017

RECOMEÇAR


Entre o fim e o recomeço. Eis-nos perante o ciclo inevitável da sucessão das coisas em que também estamos. Fazemos parte dele e nele somos chamados a completá-lo com a peça que nos foi dada logo na origem, mesmo muito antes dos primeiros vagidos. A nossa voz é essa peça de que a máquina que revoluciona os dias precisa para preencher o vazio em que frequentemente caímos. Uma máquina que exige contínuas reparações, quantas vezes por uma palavra ou até um olhar alheio. E ainda que a menor falha possa implicar uma perturbação sistémica irrecuperável, há que redefinir a linha e programar novo equipamento.   
A conclusão de uma etapa é um estado necessário da organização temporal. Reposiciona o indivíduo e apura as capacidades humanas de concretização. De outra forma, é na reconfiguração de desafios que assumimos a nossa condição de construtores de um mundo mais perfeito e que se (re)faz de horizontes em criação constante, ou não fôssemos hábeis na projecção de vontades e sentidos no futuro, onde, sem conhecimento certo algum, tudo parece ser possível. De etapa vencida a etapa prometida, assim os humanos derrubem muros, criem outras fronteiras e viajem rumo a impossíveis ontem assim julgados. É que não somos mais uma confirmação do passado - somos, outrossim, a audácia fecunda de novos estádios de matéria inalcansável. E procuramos, ainda que sem absolutas certezas, níveis de realização que despertem vindouros a novas conquistas, ao invés de ancorarmos o que já conhecemos num tempo invariável e disposto para arquivo.

domingo, 2 de novembro de 2014

AO LADO DA SAUDADE

As lembranças que gerimos tornam-se grandes com o tempo. Sucedem os anos, entre as misérias dos achaques quotidianos e as euforias passageiras de uma conquista ilusória, eis-nos frente aos intervalos dados pelos ciclos possíveis. É, pois, ao tempo, que devemos as maiores explicações dos mistérios da vida, tantas vezes interrompida de forma inglória. É sempre breve, dizemos, e assim se consome a maior fatia da história de cada um, na espera que se repete. Que fazer para ganhar uma nesga de eternidade? E se não for em solidez de pensamentos, que seja ao menos em obra visível e atitudes... Assim, em contas finais, o que deixamos a quem mais gostámos: momentos e mais momentos. Se possível, seriamente marcantes, porque a nossa vida é solene demais para andar entretidos com insignificâncias e desperdícios. Momentos que queremos guardados nas memórias tranquilas de cada um, em vivência silenciosa de afectos e saudades, não raro alimentadas pela crença de vida sem fim, que nos aproxima do espírito daqueles que, para nós, marcam a sua ausência orgânica, material, concreta. Acima dela, todos os tempos de separação nos trazem a presença incorpórea de quem mais nos marcou a existência e a razão de ser como somos. Estar ao lado dessa saudade não é estar à margem dela, mas vivê-la em presença firme e capaz de provocar em nós o eco intenso de partilhar uma realidade única e profícua.

terça-feira, 15 de abril de 2014

DA SUSPENSÃO DO TEMPO

A vida é sempre curta, diz-se. A separação das coisas que ao terreno concreto nos ligaram resolve-se no pó das origens, como regresso à fundação das substâncias mais transparentes que a aprendizagem dos dias nos vai dando gratuitamente. Partir não traz uma perda infinita, ainda que irremediável, da presença de quem desejamos lembrar eternamente, mas significa um ganho mais na nossa memória que queremos sempre viva. Afinal, se tivermos vida a sério no íntimo mais fundo, estamos a garantir a suspensão do tempo, em ordem a conservar presente uma imagem, gesto, palavra, aroma ou olhar de quem já nos espera, pedindo lucidez até ao fim, sumário das lições dadas ao longo da existência que persiste. A parte do que se conheceu foi incompleta – é sempre assim – e daí o abatimento sentido, por reconhecermos a inexorabilidade própria do acto de viver. Ficam os familiares, amigos e demais pessoas a tentar completar o projecto de vida remoto encetado, sem termos sabido exactamente nem como nem quando. Ficaremos expectantes, aguardando pela resposta impossível de dar por quem, na quietação dos silêncios e na placidez dos olhares derradeiros, se despediu sem aflições nem desdéns. É assim mesmo: os maiores sinais de gratidão com a vida ficam para o fim dos nossos dias, na espera lenta dos chamamentos vindos de outras humanidades que, de uma forma ou outra, ansiamos. Lá, onde só a memória consegue dizer que a vida é o dom inesgotável de estarmos próximos, porque competentes para suspender o tempo a nosso favor. 

sábado, 4 de janeiro de 2014

O MISTÉRIO POSSÍVEL

A entrada num novo ano traz sempre consigo um desconhecimento do que falta vencer. São outras expectativas, inevitavelmente, que entram no nosso campo de realizações possíveis, quantas vezes em consequência do que foi e do que podia ter sido o ano anterior. Ou se pretende a sério a confirmação dos sinais volvidos, ou uma alteração radical dos acontecimentos futuros, começando pela formulação impressiva de desejos pessoais. Uma coisa é certa: é nestas fases da vida colectiva que as pessoas se encontram mais unidas, porquanto firmadas na procura de melhores condições de vida, o que, afinal, parece suficiente para dar relativo apaziguamento ao penoso curso dos dias. Reconhecidamente árduos, já bastam os compromissos de responsabilidade social para trazer as indesejadas despesas, mas inadiáveis e irrevogáveis, por força das actuais circunstâncias críticas da vida comum. Começar de novo requer abertura de espírito. Abertura à capacidade de optar pela mudança (primeira premissa); ao entendimento lúcido dos indícios principiais; à aceitação da novidade. Sempre fascinante, porque sem rumo prévio, o que é o não estreado que deve prender a nossa atenção, já que dele surgem os maiores e promissores sinais para o novo ano. E muito frequentemente. Mais difícil é ter a capacidade de os interpretar, porque nisso somos sempre incultos e mal adestrados, por via de uma educação mais reprodutora que criadora. Portanto, o que conta como decisivo para a história deste ano que dá os primeiros passos é olhar o futuro com o desejo de aceitar cada surpresa como única, assim como uma dádiva de origem sobrenatural, porque o que surge inesperadamente nunca deve nem pode ser desprezado. Acolher uma graça tal qual se oferece é a síntese dos nossos comportamentos.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

SAUDADES E PALAVRAS

Sentir saudades é querer partilhar a história de vida do outro, num mesmo espaço e tempo. É querer estar em sintonia de afecto, olhando numa mesma direcção e vivendo uma intenção comum de interromper o curso implacável do tempo, que torna as horas de cada um quantas vezes inconciliáveis e impossíveis de situar num encontro. É o desejo de estar mais próximo e actuante, para compreender a essência espiritual daqueles por quem mais sentimos estar ligados de forma sincera, seja por via das origens biológicas, seja pelas razões intimamente associadas ao despertar da importância que determinada pessoa causa em nós e que, por isso, nos faz ver nela quem mais nos completa. Trocam-se recordações, olhares e palavras, na tentativa de reviver situações marcantes para ambos, quando nem sempre se pode responder totalmente aos primeiros chamamentos da outra metade de nós. Nesse sentido, desejar a sua presença, independentemente das falibilidades de agenda, já é reconhecer os valores de amizade (ou mais profundos) que ambas as partes sentem. Pode, ainda, a ausência fortalecer o desejo de presença, e aí podemos afirmar que a saudade pode ter um prazo, porquanto definido em função da disponibilidade manifestada ou simplesmente condicionada pelas circunstâncias do quotidiano. É que nem sempre a vida proporciona a aproximação pretendida, apesar das vontades muitas vezes escondidas bem lá no fundo de cada um. O pior que pode suceder, e julgamos não estar longe de uma certa convicção enraizada nas experiências passadas, é pensar que a consciência de saudade pode significar ausência de sentimento ou desagrado pela recuperação de bons momentos vividos. Bem pelo contrário, assumi-la como parte de uma forma bem portuguesa de estar é ter a consciência de nós próprios como seres que vivem pela existência do outro.      

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

EM PRESENÇA DA LUZ

Independentemente da severidade da estação com que o frio nos visitou (são os rigores cíclicos a lembrar o cuidado com a necessidade de agasalho), vivemos as festas nas amizades cultivadas ou no calor do ambiente familiar, definindo encontros propiciadores de alegria que marque os dias nem sempre auspiciosos. Qualquer celebração precisa de uma data para facilitar a reunião, mas não basta só por si. Vai muito para além do calendário, porque a ela estão associados os significados exclusivos de que convivem aqueles que partilham os mesmos interesses pelos festejos. O que é o mesmo que explicar a imprescindível necessidade humana de comunicar, em presença de quem nos reconhece como pessoas de bem. O encontro é, portanto, já em si uma celebração facilitadora do contacto ansiado por duas pessoas que querem muito estar juntas. Pelo menos duas pessoas, porque à festa podem ser chamadas mais, desde que haja uma relação de proximidade com os responsáveis pela respectiva organização. Em verdadeira ocasião de partilha, as pessoas combinam hora e espaço propícios à revelação dos sentimentos e esperam pelo momento certo de um toque luminoso capaz de inspirar as palavras e suscitar a doação mútua, em manifestações de afecto aceites de livre vontade. É aí que o céu se abre e a crença cresce, apesar da despedida refeita numa última curva, em direcções opostas, mas com o fito na marcação de novo encontro num dia novo, onde a luz surja logo aos primeiros acenos de presença sensível.